Hoje, damos início a uma nova rúbrica no nosso blog: a Entre Histórias. Esta rúbrica nasce da vontade de partilharmos convosco algumas das histórias que as pessoas com quem nos vamos cruzando, já com mais de 65 anos de vida e tanto para contar e ensinar, vão partilhando connosco. Esta semana, celebrámos o Dia dos Namorados e não poderíamos terminar a semana do Amor sem partilhar convosco uma bela história de Amor, com mais de cinquenta anos, contada na primeira pessoa, por uma neta muito orgulhosa.
Deixem-nos a vossa opinião sobre esta nova rúbrica e sobre esta primeira página do Entre Histórias, dedicada ao Amor 🙂
Sentada na beira da cama, limitei-me a observar e a deixar-me levar pelas frases anacrónicas, atropeladas ora por um, ora por outro. Os olhos azuis dele, que já só vêem com a imaginação ou com a memória, perdidos no fundo do quarto, pareciam brilhar de um brilho sentido, enquanto ela entrava e saía do quarto, a querer contribuir para a história, mas sem descurar o almoço que se ia fazendo ao lume.
“Foi no Moçambique que nos conhecemos. Ela ia trabalhar para Lourenço Marques e eu ia para a tropa” – e o mesmo olhar perdido.
“Queria molhar-me com a mangueira, era só o que faltava!” – ela, já a voltar para a cozinha.
“Era uma grande festa, a passagem do equador. Colocávamos tábuas por cima da piscina, convidávamos as raparigas para subir e quando já estavam em cima das tábuas, arranjávamos forma de as atirar à agua” – sorriso maroto – “Mas algumas já sabiam e levavam o fato de banho vestido ou fugiam. A tua avó fugiu, com outra, mas ligámos as mangueiras e aquilo é que era vê-las correr!” – gargalhada, o olhar da recordação.
“Em Lourenço Marques, a casa para onde fui servir era mesmo junto ao quartel. Conversávamos todos os dias, no jardim” – e o almoço para mais dois a fazer-se ao lume.
Cerca de um ano após a chegada a Lourenço Marques, nascia o primeiro fruto deste amor – ele de Torrozelo, aldeia do concelho de Seia, ela de Pevidém, mais a norte, onde a nação Portuguesa teve o seu berço – a minha mãe. Não se casaram. Ela, muito pragmática, traço que a acompanha até aos dias de hoje, cuidava da bebé. Ele, romântico e responsável, visitava-as no jardim ou levava a menina à praia.
“Queimei os pés para fugir à tropa. Nem conseguia andar. Mas tinha a certeza que ia ficar livre, quando vissem o estado em que tinha os pés” – o olhar perdido, mas já sem sorriso, a recordar com as rugas do rosto as dores daquelas queimaduras – “Mas limitaram-se a dizer-me: Isso passa!”. Foram o passaporte para o amor, aquelas queimaduras.
“Nunca chorei tanto como nos meses em que o teu avô esteve preso.” – e já a voltar à cozinha, outra vez.
“Estive dois meses preso por abuso de autoridade” – tinha-se defendido de um ataque de um soldado, mas sendo cabo não podia bater em ninguém de patente inferior – “Ele esteve preso comigo, por abuso de confiança. Dois meses.”
Terminados esses dois meses, a vida no quartel não voltou a ser a mesma. Mais dureza, menos tolerância. Para visitar as suas raparigas, o meu avô tinha de fugir do quartel, escondido num recipiente dos que serviam para transportar o alimento para os porcos. Perdera a patente e a liberdade. Estava na altura de voltar.
“Ainda tive de ser eu a comprar o meu bilhete, porque o teu avô não tinha nem um tostão!” – sempre muito pragmática e muito atarefada, a entrar e a sair do quarto – “Mas consegui voltar no meu Moçambique” – e o esboço de um sorriso.
“Na viagem para Lisboa, a tua avó fez um vestido!” – e o orgulho a escorrer destas palavras – “Pois fiz, e desci em Lisboa com o meu vestido novo!”- e a cumplicidade de uma memória partilhada.
Voltaram a Lisboa, de onde tinham partido. Casaram porque “O meu sogro disse-me que, se não casássemos, nem a terra o havia de comer, quando morresse. E eu não queria ficar com esse peso na consciência!” – pragmática, tudo tem de resolver-se sempre. É assim que a entendo, sempre solução.
Cinquenta e dois anos depois, três filhos criados, uma mão cheia de netos. Ela tem sido a companheira de todas as aventuras – mulher, mãe, ajudante de oficina, pilar de uma história que se foi escrevendo a dois e da qual se vai esquecendo de alguns capítulos. Hoje, é enfermeira, olhos e voz da razão. Como desde os tempos no seu Moçambique. Ele, de alma risonha e eternamente infantil, é a sua memória. Foi professor, amigo e farol da sua rapariga. Sabe todos os detalhes, tem o sorriso e a palavra fácil. Não existem um sem o outro.
“Avó, qual é o segredo de um casamento de cinquenta e dois anos?”
“Olha, filha, amor e respeito.”
Uma das netas